Ao contrário do que ocorria até há poucas décadas – e não só no Brasil – hoje, o debate não é mais entre democracia e anti-democracia, mas entre diferentes conceitos de democracia. Todas as correntes políticas apresentam-se como defensoras da democracia.
A questão passa a ser: o que se define por democracia?
Ao longo dos anos, a questão em torno do significado da palavra se aprofundou a partir do surgimento das ideias socialistas de igualdade, no século XIX. A disputa refere-se à incorporação à democracia dos direitos econômicos e sociais como condição necessária ao exercício pleno da soberania popular.
Como as experiências contemporâneas de democracia política ocorrem dentro do capitalismo – sistema produtor de desigualdade, por sua própria natureza – a realização plena do ideal democrático vive em permanente contradição com a estrutura econômica que o hospeda.
No caso brasileiro, a democracia plena – política, econômica, ecológica, de raça e de gênero – está longe de ser conquistada. Somos um dos países mais desiguais do planeta. Como falar em democracia diante desta contradição?
Por outro lado, muitos consideram a revolução digital um fenômeno equivalente à revolução gutenberguiana, isto é, à invenção da impressora no final do século XV.
Apesar de inegáveis benefícios para a interação virtual entre pessoas e grupos e, inclusive, o fato de permitir o empoderamento de diversos grupos subalternos, o surgimento da internet foi revelando que a esperança de que ela alavancaria a participação democrática no sentido da soberania popular, era uma grande falácia.
A disputa política, sobretudo eleitoral, não ocorre mais em um espaço público no qual todos estão expostos às mesmas informações e onde os antigos meios de comunicação exerciam o protagonismo na formação da opinião pública.
Na verdade, as preferências e escolhas de consumidores e eleitores podem ser manipuladas por algoritmos que selecionam e hierarquizam as informações/desinformações distribuídas nas redes sociais.
A nova realidade no campo da comunicação e da informação possibilitou a manufatura e a disseminação em escala industrial da desinformação, isto é, da “informação comprovadamente falsa ou enganadora que é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente, podendo prejudicar o interesse público”.
A desinformação viola um pressuposto básico da democracia política, na medida em que corrompe a formação da opinião pública. Mais do que isso, ela cria o ambiente propício para o descrédito dos padrões e referentes da verdade. Passamos a conviver com múltiplas reivindicações de verdades concorrentes; estimula-se o descrédito aos dispositivos de saber que, normalmente, avalizavam, com sua autoridade, o que era verdade. Estabelece-se uma desatenção deliberada aos critérios até então aceitos para validação das informações, criando-se uma cumplicidade da audiência com a desinformação.
Inaugura-se, assim, uma situação extremamente complexa na qual se perdem todas as referências do que é verdade. Surge um mundo paralelo onde o referente da verdade não são os fatos, nem a razão, mas os sentimentos e a emoção.
É o novo mundo da pós-verdade
Nestes tempos de desinformação e pós-verdade assistimos à utilização da religião como forma explícita de manipulação política, agora, sobretudo eleitoral.
Setores fundamentalistas ultraconservadores – que se identificam como cristãos, embora não revelem qualquer compromisso com a ética do Evangelho – contando com amplo apoio financeiro de grupos empresariais nacionais e globais de extrema direita, tem se utilizado do discurso de ódio e feito campanhas públicas contra cristãos identificados como progressistas, fomentando a discórdia e a intolerância.
Democracias como a nossa, enfrentam um dilema: ou encontram um antídoto eficiente para combater a desinformação ou dificilmente conseguirão sobreviver.
Resta-nos prosseguir “combatendo o bom combate”. Lutemos pela sobrevivência de uma democracia política representativa que garanta a realização periódica de eleições livres com sufrágio universal, mesmo sabendo que ela mascara as imensas desigualdades que impedem a realização de uma democracia plena.